24 de abr. de 2007


Distorção

Distorci o tempo e a vida do tempo que vai e volta. Por enquanto, ainda vivo para contar a história.

20 de abr. de 2007


Os pardais

E era a mesma coisa, mas não era mais. Quando os bicos dos pardais se encontraram pela primeira vez nenhum deles sabia que a vida inteira que viria depois daquela noite seria diferente. Os dois, que cresceram em graça e sabedoria juntos, descobriram a amizade ressabiada de quem mais cuida manter-se perto que zelar pelo próprio viver. Quando estavam juntos, eram completos. E sem perfeição, um deles sentia que no completo faltava um pedaço. Cometera o erro de se apaixonar pelo seu amigo de fé. Guardara seu segredo com uma nada usual parcimônia: em um mês, até o bem-te-vi e o pica-pau sabiam de sua paixão.
Era natural que seu amado também soubesse. E como bom amigo que era, decidiu zelar pelo bem da que o amava. Decidiu mostrar os limites, tolher as saliências, aparar as arestas e colocar a situação no lugar. O fogo da passarinha foi se afogando nos escrúpulos. Virou uma quase-brasa. Um quase-cinza, só acesa porque ventava. Até que tudo voltou a ser como era. A amizade reinava soberana sobre o amor derrotado.
Foi quando o desejo aprontou das suas. Numa noite, os amigos cruzaram os bicos. E ambos se acharam realizados. Tudo de mal que acharam que viria, não veio. Nem o medo nem o arrependimento. Veio só o que vem depois de algo que não deve acontecer, as conseqüências. A amizade que havia retornado só durava ainda por esforço mútuo e obstinado de dois pardais que tinham consciência, mesmo antes de se saberem pardais, que precisavam mais da asa amiga que do prazer de roçarem suas penas entre si. Nos seus desencontros, se desencontravam cada vez mais. Até que a mistura de medo e ponderação venceu a vontade, e pararam. E acabaram amigos felizes como jamais seriam se seus bicos se tocassem de novo.

17 de abr. de 2007


O tempo e o espaço

Eu pensei em como andar. Quando vi, minhas pernas tinham me tirado do meu mundo. Eu sentei num poltrona espaçosa, e enquanto anjos lilazes lavavam meus pés, vi a Terra de fora e ela estava parada. Toda aquela imensidão azul parada. Parecia que finalmente a inércia do espaço havia vencido a força que fazia aquela massa girar. Apertei o canto dos olhos e consegui ver que não era só de longe que o mundo tinha parado. De perto também nada se mexia. O guarda de trânsito apitava já havia dois minutos, imóvel. E nenhum carro ultrapassou o sinal. Nem os que estavam com o sinal verde. Aliás, até o sinal parou verde. A caixa do supermercado parou com um saco de batatas nas mãos, o último da compra da cliente, que ficou congelada assinando o cheque que pagaria as compras do mês. Porém, aquele mês duraria pra sempre, e as compras nunca iriam se esgotar.

Longe dali, uma equipe de saltos ornamentais treinava. O saltador flutuava no ar, entre o parafuso e segundo mortal. A menina, que aplaudia o palhaço na rua, ficou imóvel com um sorriso tão cheio que achei que o sol sá tinha brilhado aquele tempo todo porque aquela menina sorria. A tarrafa do pescador também parou no ar. Não iria pegar nada nada, porque mesmo que as gaivotas estivessem voando, elas passariam mais alto. No alto do morro, até a bala ficou levitando no ar. Quando tudo voltasse ao normal (se em algum momento tudo voltasse), antes que alguém pudesse piscar ela estraçalharia a cabeça daquele rapaz que voltava da escola com a namorada. No meio da floresta, um sagüi tinha errado o golpe de vista. Só não havia ido ao chão ainda porque estava flutuando no espaço.
Depois de 15 dias eu descobri que o espaço tinha parado, mas o tempo não. Cada ser daquele meu mundo estava envelhecendo enquanto eu estava fora dele. Cada vida de cada um continuava, cada tempo passava, e comecei a acreditar que tudo estava parado no espaço porque eu não via mais o espaço. E era só o trempo que espalhava por todos os espaços. Quando eu vi o tempo passando e o mundo parado, notei que nunca mais o meu mundo seria o mesmo para mim. Eu sempre sentiria que era alguns dias mais velho que o mundo. Nada seria igual. E o único que me reconheceria seria o tempo. O único que esteve comigo em todos os momentos. No mais, o mundo parara. Ou só eu não o via girar.