23 de jan. de 2007


Um conflito pela metade*

Distraída, Julia deitou-se. Apagou o abajur, juntou as mãos à face e olhou a claridade pelas frestas da persiana. De súbito, sem erro menor, cometeu o maior equívoco de todos: resolveu pensar. Notou que a cama esatava grande demais, conservando carícias perdidas e rastros de perfume. Adivinhou Daniel em alguma café de esquina, pedindo copos de cachaça.
Conscientizou-se, finalmente, do fim. Cansou de não pensar. E de fugir do inescapável. Tanta convivência só servia agora para lhe dar a certeza de que Daniel também teria a dignidade de chorar o fim. Seus braços estavam sobre o travesseiro e sua perna esquerda deslisava leve no chão do quarto, mas a sua alma estava sete palmos abaixo da terra. A vida fora dividida, e tal divisão a tornara confusa. Nem se recordava mais como era estar sozinha. E maldisse a obrigação de recordar tal sensação. Esbravejava silenciosamente. Não era mais um inteiro. Era um pedaço de algo que se espatifou no chão.
Enquanto especulava a terceira cachaça de Daniel notou que realmente o conhecia (talvez mais que a si mesma). Penetrara em seus pensamentos como um bandeirante que desbravava a mata virgem. Sabia também que o queria e o carecia, mas mesmo assim não deu o braço a torcer. Via os olhos vermelhos e as frases arrastadas, o hálito etílico, um pouco por causa da pinga, outro por causa das duas noite passadas em claro. Mesmo de longe, Julia sabia que Daniel e ela ainda eram um. Duas metades separadas, mas um. E sabia que o seu lençol e o balcão do café da esquina eram a mesma arena do erro de pensar. E lembrar.
Foi quando amou. Não aventou se pela última vez, mas amou. E mais, sentiu-se vibrar como que é amado. Pensou que agora tudo estaria resolvido, e poderia se lançar da janela e voar. Esquecer. Mas quis para si a dignidade que esperava de sua outra metade. E reconheceu que pensar, mesmo não sendo solução, não era erro. Era nobreza e comunhão. Unir-se novamente a sua metade. E dormiu amando, sonhando com o passado que nunca vai voltar.

*Primeiro parágrafo: Vanessa Bencz. Oficina de Criação Literária II, 25/07/2006.

5 comentários:

Fran Hellmann disse...

Estas coisas de pensar demais... Me identifiquei! rsrs

Muito talentosos os autores.

Foto simplesmente maravilhosa!

:*)

Ana disse...

É, pensar é bom...
Mas sonhar é melhor!

Belo texto.
Incrível vocabulário.

Congratulações pelas melhoras.

Michele Eger disse...

ÓTIMO!!
áh :~;

tá, boa noite :*

Anônimo disse...

Ficou muito lindo! [=
Aguardo por outras publicações. =*

Anônimo disse...

Juro que senti o amor descrito nesse texto aqui dentro, do meu lado quando o li.
Muito real tuas descri�es.
Parab�ns aos dois autores!

Abra�o,

Heloisa.